Não há pretextos
para voltar ao Alentejo. Região considerada a mais desprotegida do país, de
paisagem árida, característica e de gentes peculiares de tez carregada pelas
marcas deixadas pelas
dificuldades da vida. Visitar o Alentejo é voltar às
minhas origens. Considero-me uma semente deste pedaço de terra que, observado
sem pormenor, parece que não alterou nos últimos 40 anos. É somente uma falsa
percepção, porque, tal como eu germinei e cresci, este parque natural, mantendo
a sua genuinidade soube-se mostrar ao mundo dando a conhecer o seu enorme
potencial. Hoje é considerado um dos locais mais genuínos e preservados da
Europa. Encerra nas suas fronteiras uma alma única onde o clima se alinha com a
paisagem e onda a gastronomia, hoje de autor e consagrada mundialmente, foi
sustentada nas dificuldades dos tempos antigos. A necessidade nem sempre significa
desespero e acomodação, ela é também motor de criatividade e em terras onde não
havia fartura, o pão substituía a carne e as ervas aromáticas os temperos mais
finos. Desta forma nasceram receitas e experiências culinárias que hoje merecem
destaque em conceituados programas de gastronomia. Do litoral ao
interior esta
terra onde o tempo parece que não tem pressa de passar, tem inúmeros tesouros por descobrir. Desde campos arqueológicos que nos fazem recordar que outros
povos antes de nós também já apreciavam a beleza e os encantos deste solo ao
sul da Europa, até aos monumentos, arte sacra e paisagens naturais que não nos
cansamos de admirar. O Alentejo de hoje é um Alentejo do mundo e os tempos que
se vivem são momento de vida únicos. É em busca destes preciosos e únicos
momentos que, portugueses e estrangeiros de todo o mundo percorrem por trilhos ou
estradas, mais ou menos informados e orientados, pelos caminhos à descoberta do
vasto património que o Alentejo tem para oferecer. Longe vão os tempos em que,
apesar da humildade no acolhimento, havia carência de locais onde receber e
mimar os ilustres e bem-vindos visitantes. Hoje estes espaços têm surgido um
pouco pela vasta área que cobre o Alentejo. São projetos de bom gosto, muita
qualidade e
apostam essencialmente em oferecer aquilo que é genuíno, não
esquecendo nunca as raízes do passado que deu alma a este lugar mágico e único
que é a planície alentejana. Recentemente tivemos a oportunidade de conhecer
mais um projeto de alojamento no espaço rural, recém- inaugurado. Encontra-se
localizado a 18 km da capital alentejana de Beja, na estrada que liga esta
cidade a Mértola. Encontra-se implantado no meio de uma herdade de mais de 400
hectares de terreno ao serviço do pastoreio e da criação de gado bovino e ovino.
A ornamentar os vales e as planícies encontra-se manchas de sobreiros,
azinheiras e alfarrobeiras, conferindo à paisagem uma impressão quase
artística. Este novo projeto de alojamento nasceu, foi pensado e projetado com
muita vontade de expressar um conjunto de ideias e muitas sensibilidades para
que o resultado final não fosse apenas mais um conjunto de paredes e de
serviços. O próprio nome do projeto, Xistos, representa a simbologia, o
significado e a importância que estas rochas metamórficas, que se encontram em
alguns locais da propriedade, representam para a principal responsável pelo projeto,
a arquiteta, professora, botânica, biólogo, gestora e mulher de muitas sensibilidades,
Paula Conduto Mira. A entrada na propriedade faz-se por um portão cujo código
de acesso nos é dado apenas no momento da chegada. Para lá do portão o mundo
transforma-se, espera-nos um caminho rural, por vezes difícil de percorrer (no
dia da nossa chegada o Alentejo foi abençoado pela chuva e o barro
característico do terreno transformou-se em lama vermelha com cheiro a terra)
mas que nos compensa com o silêncio e a beleza da paisagem envolvente. A única
perturbação ao longo do caminho foram as vacas que nos olham com ar desconfiado,
algumas encontram-se mesmo no meio do caminho, o que para os visitantes pouco
habituados a estas companhias causa algum stress por apenas pensarem que elas
se podem enervar e atacar. Não podíamos estar mais enganados e a prova disso
sentimo-la mais tarde quando percorremos os magníficos caminhos da propriedade
a pé para sentir o silêncio e a fusão de aromas que perfumava os campos. São 6 os
quartos que nos esperam na zona do alojamento. Existe também um espaço comum onde os hóspedes podem conviver, tomar um chá, ver televisão ou ocuparem.se com leituras. Todo o conjunto foi construídos de forma sóbria, de paredes direitas, pintadas de branco, tendo sido utilizadas algumas pedras de ornamentação. A
anfitriã é a Margarida, uma senhora alentejana, de sotaque carregado, que
transborda de simpatia e nos recebe como se fossemos da casa. Vi nela que não
precisou de nenhuma formação específica de hotelaria e
turismo para fazer bem o
seu trabalho. É uma força viva que concentra as suas energias para agradecer a
visita e proporcionar com tudo o que tem ao dispor, uma estadia muito para além
do agradável; familiar, desprovida de formalismos exagerados e preenchida com
pequenas sensações que ultrapassam as paredes, o design e tudo o que se encontra para além do estilo e do conforto.
Tivemos direito a
uma visita guiada pelos diversos espaços, que refletem bom gosto e sobriedade
sem pretensões de ostentação excessiva. Os apontamentos decorativos refletem o
espaço onde nos encontramos com referências ao Alentejo, ao novo e ao velho
Alentejo, sim porque a vida é feita de memórias e de respeito pelas ideias e
pelos projetos dos outros que antes pisaram aquelas terras. Todos os quartos têm
abertura e passagem direta para a piscina que se encontra a poucos passos dos
decks que constituem os pequenos espaços reservados de cada alojamento. Não há
barreiras arquitectónicas, apenas espaços,
verdes com flores e o horizonte da
paisagem que se oferece como uma tela aos olhos de quem pára para olhar com
olhos de ver. A tarde foi passada a sentir o valor da terra e do silêncio,
apenas interrompido pelo chilrear de algum pássaro ou pela dança dos ramos das
árvores quando o vento sopra uma brisa mais forte.
À
noite tivemos o privilégio de conhecer também o marido da Margarida que se
dedica a cuidar daquela imensidão de terreno e das centenas de cabeças de gado,
mais de 100 vacas, sem contar com aquelas que não estão em idade reprodutora e 200 ovelhas. Aprendi com ele que as vacas também têm sentimentos e quando ainda bebés, se privadas
das suas progenitoras por algum infortúnio do destino, quando as suas mães têm a pouca sorte de não sobreviver ao
parto, muitas deixam de comer e desenvolvem-me sempre menos que as outras.
Vacas e ovelhas respondem ao chamento do sr. José, pois percebem o que ele diz.
Estes animais quer bovinos quer ouvinos são aqui criados com o objetivo da
comercialização ao abrigo da certificação de produtos DOP designados com a
marca Carnealentejana. No meio desta conversa tivemos o
privilégio de conhecer
a alma do projeto que entretanto chegou. A Paula é uma mulher especial, dona de
uma grande experiência de vida onde nem sempre tudo lhe correu de feição. Esses
tapetes que escorregaram não a fizeram nunca cair, ao invés, funcionaram com
estimulantes do seu sistema imunológico criando resistência e resiliência. Hoje
continua a lutar por aqui em que acredita, sabe ouvir, sabe ver com olhos de ver,
como ela gosta de dizer. É portadora de uma enorme sensibilidade e valoriza os
pequenos detalhes, que podem transformar situações banais em momentos de vida
com grande sabor. Conhecemo-nos à volta de um delicioso chá preparado pela
Margarida. O chá que é consumido na propriedade é proveniente de outra projeto
da nora da Margarida que cultiva chá de ervas aromáticas a alguns kms da
herdade. Ficamos a saber que todo o projeto está inserido em zona de várias
reservas como sejam, a reserva ecológica
nacional, a rede natura e a rede
protegida de Castro Verde, e foi projetado respeitando integralmente o meio ambiente, sendo totalmente auto-sustentável.
Toda a água que é consumida no alojamento vem de uma pequena barragem e é
tratada com um sistema de filtros até estar em condições para ser consumida. É aquecida com lenha proveniente da herdade. A energia que alimenta todo o alojamento é
proveniente de painéis fotovoltaicos e armazenada em dezenas de baterias que
são auxiliadas por um gerador. Existe ainda um aerogerador eólico (danificado
na altura da nossa visita). O sono foi embalado pelo silêncio da herdade e pelos
sons distantes provenientes do animais no campo. O dia seguinte amanheceu com
um sol brilhante como só o alentejo nos sabe oferecer. Esperava-nos um pequeno
almoço delicioso preparado pela Margarida e pela Paula onde não podiam faltar iguarias
locais com diversos tipos de queijos, o delicioso e único pão alentejano
acabado de chegar pelas mãos do Dr. Conduto,
pai da Paula, sumo de laranja
natural, bolos diversos e muita atenção e carinho. A seguir ao pequeno almoço
esperava-nos o ponto alto desta nossa visita que culminou com uma visita guida
pela Paula a uma zona da herdade denominada de mini-bosque. Trata-se de um vale
onde passa uma ribeira e que, à primeira vista, para os mais distraídos, não
passaria de mais uma zona da herdade, encaixada entre 2 planaltos com um curso
de água, encostas de xistos e cobertura de vegetação. Mas ali é preciso
aprender a ouvir o som do silêncio, olhar com olhos de ver para as plantas
silvestres ao nosso redor, e claro, na primeira vez, uma expert em todos estes
pormenores que a natureza ali colocou para que possamos apreciar. Outro dos
projetos em que a herdade está envolvida é no desenvolvimento de produção de
recursos silvestres, nomeadamente na disseminação de plantas aromáticas e
medicinais.
Este projeto envolve parcerias com laboratórios e uma universidade
no sentido de se desenvolver uma linha de produtos cosméticos e medicinais, com uma marca apelativa "Um" já
em curso, e brevemente disponíveis para comercialização. No percurso ao longo
da ribeira, que desta vez tinha curso de água por ter chovido no dia anterior,
podemos encontrar variadas plantas aromáticas desde a esteva conhecida pela sua
folha oleosa e a sua bela flor esbranquiçada
de centro amarelo, até ao rosmanhinho verde ou branco, o funcho ou o
sargaço, as silvas, os loendros, os musgos e os lírios
do campo. Por cada passo que damos é possível observar,
sentir e cheirar as plantas naturais em estado selvagem que constituem as espécies autóctones alentejanas. Neste pequeno laboratório natural aprende-se a
observar com cuidado e a apurar os sentidos para ouvir os sons dos pássaros e
cheirar o perfume dos aromas que cada uma daquelas plantas nos entrega de forma
livre e gratuita. Com uma guia que
nos ensina a ver e a pensar de outro modo, o
outro lado da vida, a da reflexão, da partilha, do saber ouvir, da luta e da
perseverança e das múltiplas sensibilidades, adquirem-se em pouco minutos
pequenos skills que nos ajudam pelo menos a pensar que existem outras armas a
que podemos recorrer para dar outro sentido e melhor orientação às múltiplas
dificuldades que nos surgem. Muitas vezes, talvez pela modo formatado como hoje vivemos, a nossa mente apenas nos aponta caminhos alternativos que não
ajudam a resolver mas sim a prolongar ou a modificar uma situação que, se
processada com a ajuda de um sentido maior de sensibilização, nos levaria a
encontrar outro modo de estar e de enfrentar a vida. Despedimo-nos deste local
com vida e cheio de projetos e de sonhos, com muita vontade de voltar em busca
de mais equilíbrio, novas aprendizagens e novos momentos de vida.
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