Saturday, May 17, 2014

As ciências da reanimação, Bilbao e o Guggenheim

Neste ano de 2014 os posts ao meu bloque tardam em chegar. Estamos em meados de maio e este é apenas o terceiro. Não é certamente porque fui assolado por uma vontade desmedida de desmotivação ou porque perdi o interesse pela escrita. Não estaria a ser honesto se me refugiasse nestas desculpas. São tantas as coisas que nos impedem de fazer o que muito gostamos e que contribuem para o equilíbrio intelectual e emocional, que 
enumera-las seria fastidioso. Parecem haver sempre outras prioridades e apesar de termos todos o mesmo tempo, as 24 horas do dia, administramo-las de formas muito diferentes. Trabalhamos, adaptamo-nos a cada instante a novas regras, exigências e estados de espírito de quem coordena cegamente sem saber ouvir, partilhar ou dignificar. Em casa espera-nos a rotina de quem tem uma família onde muitas vezes procuramos as forças muitas vezes consumidas nas muitas horas de trabalho que temos que continuar a fazer para manter os vencimentos muito mais parcos do que há 20 anos atrás. É também no nicho que encontramos muitas vezes o local perfeito para mostrar as nossas fraquezas perante muitas outras adversidades que por muitas vezes não nos apetece enfrentar. São refeições para 
preparar, loiça para arrumar, roupa para estender, trabalhos de casa para acompanhar, comportamentos para gerir, asperezas, queixas e o mais variado tipo de perturbações que algumas crianças tão habilmente sabem produzir. Inconsequentes, despropositadas, com mestria ou apenas porque são comportamentos adequados a cada idade, mas na verdade elas desgastam profundamente e perturbam seriamente a vida escolar, social e familiar. Alvitram-se estratégias para reduzir a culpabilidade, qual estratégia terapêutica para reduzir a ansiedade e responder de forma camuflada à nossa frustração. Perdemos as forças, desarmamos e procuramos no labirinto na nossa inteligência formas capazes de resolver o que julgamos no momento sem solução. Já vai longa a lista do que nos afasta de inscrevermos nas nossas 24 horas, os nossos minutos que nos fazem bem. Os momentos que nos fazem agradecer o milagre de estarmos vivos. Sim, porque isto de se unirem duas células e se diferenciarem em múltiplos tecidos e órgãos sem aberrações significativas, é um verdadeiro milagre. Claro que não somos seres perfeitos e isto se me referir apenas aos 
aspetos físicos. A forma humanoide permite-nos fazer quase tudo. Começando pela parte inferior do corpo: se nascermos com duas pernas podemos andar, os braços permitem-nos uma multiplicidade de funções assim como as mãos e os dedos. O tronco com a região pélvica e a cavidade abdominal permitem-nos suportar os órgão e a carapaça dura do crânio alberga a mais bela e sofisticada invenção da natureza, o nosso cérebro. Claro que podemos viver sem muitas destas “peças” ou com alguns defeitos nas mesmas. Isto dos defeitos é porque nos habituámos a normalizar as coisas e a medi-las e a transformá-las em números para podemos atribuir coeficientes de normalidade universais. Tudo no nosso organismo parece ser mensurável. Medimos a dimensão dos passos, a biomecânica mede a trabalho das articulações e a fisiatria os desafios das fibras musculares. Mas também medimos, graças às ciências hemodinâmicas e à biofísica, a velocidade da corrente sanguínea, fazendo brilhantismos com as velocidades pré e pós estenóticas. Medimos o diâmetro interno do lúmen dos vasos e conseguimos prever um evento cardiovascular a uma distância satisfatória 
se as artérias de menos calibre estiverem obstruídas. Medimos quantidade de moléculas de colesterol, glicémia, ácido úrico, tempos de coagulação, a função renal e hepática e tudo o que prolifera nas análises convencionais. Fazemos ainda estudo da função sexual medindo o tempo de ereção, o tempo de latência intravaginal e os tempos da ejaculação precoce. No coração medimos tantas coisas: a quantidade de sangue que regurgita das válvulas, a dimensão das paredes e cavidades, os gradientes entre as diferentes cavidades e vasos e mais recentemente a distância e os tempos de deformação das fibras miocárdicas que nos dão com muita precisão a função do ventrículo esquerdo. Medimos os tempos de duração da 
isquémia até à morte das células e as formas de tratar estas situações. Desde o século XIX que medimos as componentes elétricas do coração: a duração das diferentes ondas, os tempos, as amplitudes e a duração dos diversos intervalos dos componentes do eletrocardiograma. Medimos a velocidade do fluxo urinário, a dimensão do estômago e tornamo-lo mais pequeno para tratar a obesidade. Estudamos a função cerebral estudando as características do fluxo sanguíneo, a morfologia das ondas do eletroencefalograma ou o comportamento das diferentes regiões na ressonância magnética e tantas outras que fariam deste post uma 
pequena curiosidade em fisiologia. Bem, mas com tantas medidas estou-me a afastar da essência do post que é partilhar a primeira experiência que inaugura os registos do ano, e a experiência foi gratificante. A viagem foi a Bilbao, cidade berço do intitulado país basco espanhol. O propósito foi assistir à 12ª Conferência do Conselho Europeu de Ressuscitação (ERC). Tenho sido um fiel seguidor deste evento científico nos últimos anos pois continuo a não conseguir estar nem viver profissionalmente com satisfação se não me contaminar pelo menos uma vez por ano, com a ciência, o debate e a partilha que este tipo de reuniões nos 
trás. É um momento mágico de aprendizagem e de reflexão que permite estar perto do que é mais atual e científico na Europa e no mundo. Bilbao fica a pouco mais de uma hora de avião da capital portuguesa pelo que as coisas ficaram facilitadas, quer pela distância, quer pelo tempo e pelo preço. Com as companhias aérea low cost as viagens ficam mais acessíveis, e são igualmente confortáveis e, neste caso, direta até Bilbao. Hoje preparam-se os percursos via internet, sabe-se como alcançar o centro da cidade, que autocarro, o preço os horários, tudo. A carreira 3247 faz a ligação do aeroporto até ao centro da cidade, que se alcança em menos de meia hora. Para quem quiser visitar Bilbao, deve descer na 2ª paragens junto à Praça Muyua. Decidi não comprar o Bilbao Card que se vende 
em formato de 1, 2 ou 3 dias, por 6, 10 e 12 euros respetivamente, pois a pé conhece-se melhor e o contacto é muito mais próximo. A cidade não é grande e o meu alojamento, Residencia Universitária Blas de Otero na rua de Las Cortes apesar de ficar na região oposta ao local da conferência, era um pretexto para uma boa caminhada a pé todos os dias. Com o mapa da cidade a orientação é fácil e podem-se escolher vários trajetos. As avenidas principais são sempre uma tentação para quem gosta de ver as grandes lojas internacionais, mas, como todos sabemos, isso já não constitui um desafio uma vez que proliferam de igual forma por todas as cidades. O interessante é procurar os atalhos que nos fazem andar às 
voltas mas que permitem encontrar aqui e ali, magníficos bares, casas de enchidos, pastelarias ou padarias que são uma delícia para os olhos e nos fazem sentir que valeu a pena olhar para o mapa mais vezes em busca de orientação. O meu alojamento era simpático e funcional. Tratava-se de uma residência universitária com estúdios individuais bem decorados, confortáveis e funcionais. Os serviços de apoio também primavam pelo bom gosto com decoração moderna e cuidada. Apesar do alojamento se designar de residência 
universitária, funciona com um hotel, pois recebe pessoas de todas as idades. Como tal, é um local onde se cruzam pessoas de todo o mundo e onde é fácil estabelecer contacto com outros residentes e trocar experiências ou simplesmente ouvir conversas entre pessoas de muitas nacionalidades que  partilham pontos de vista em relação a estado da economia, funcionamentos das sociedades, às razões das suas viagens ou às tentativas de aprender expressões comuns nos idiomas uns dos outros.  Foi também o que fiz com a Amagoia, a colaboradora da cafetaria que me ensinou alguma em basco e que registaria no final do post. 
A localização da residência apesar de ser numa zona periférica da cidade ficava a 10 minutos a pé do centro da cidade. O ambiente na rua era multicultural e multirracial e a rua concentrava inúmeros bares de alterne com as meninas vestidas com os trajes a que estamos habituados a ver nas trabalhadoras do sexo. Apesar deste ambiente senti-me muito seguro, 
 pois esta rua e a rua abaixo desta, a Kalea San Francisco são dois dos locais de passagem para a zona velha da cidade para quem não quiser fazer o trajeto pela beira-rio. O evento que me trouxe à cidade decorreu no Palácio de Congressos e da Música e da cidade. Em basco Euskalduna, Biltzar eta Musika Jauregia. Um edifício magnífico com uma arquitetura que casa o vidro e o aço com o enquadramento paisagístico do rio de Bilbao. Três dias de reflexão e debate sobre as ciências da reanimação cardiorrespiratória. Muitos trabalhos de pesquisa, novas investigações e muitas dificuldades e incertezas pois este é o ano de preparação das 
novas recomendações que serão publicadas no dia 16 de outubro de 2015. Bilbao é uma cidade magnífica, rodeadas de planaltos verdes e rasgado pelo rio. As suas margens estão imaculadamente arranjadas permitindo aos habitantes usufruir de toda a sua extensão para passear e praticar desportos. Existem inúmeras atrações pela cidade destacando a cidade velha “Bilbao la Vieja” com as suas ruas estreitas pejadas de lojas, bares, esplanadas e gente que deambula por cada canto, ruela ou esquina à procura do tradicional, dos famosos pinxos 
(pequenas porções da cozinha basca reinventada) muitas vezes servidos por cima de uma pequena fatia de pão. Podem assemelhar-se às conhecidas tapas espanholas. Existem pintxos de quase tudo e prová-los implica um pequeno investimento porque não sendo um exagero fazem do preço de uma refeição uma decisão a ter em conta para os limitados orçamentos com que temos de viver. As gentes são muito afáveis, cordiais e educadas. Nem 
parece um povo que tem passado a vida em luta pela sua autonomia e independência, tendo deixado o passado marcado de sangue e de revolta. Quem não se lembra da organização terrorista ETA (Euskadi Ta Azkatasuna, ou Pátria Basca e Liberdade) organização que surgiu em 1959 no seguimento de outros movimentos estudantis da época. Inspiraram-se na revolução cubana e lutaram inicialmente contra a ditadura de Franco. Apesar da chegada da democracia a violência não cessou. O braço político, Herri Batasuna sempre quis disputar eleições mas o partido foi considerado ilegal em 2003. O grau de autonomia dos bascos tem sido um problema ao longo dos séculos e a questão da independência ainda hoje se mantém. 
Após o fim da ditadura franquista, a constituição espanhola reconheceu direitos à região e aos bascos assim como a outras etnias. Hoje, a sociedade divide-se entre os que exigem a independência a qualquer custo, os que são moderados e aqueles que convivem bem a autonomia atual mantendo laços com Espanha. Esse grupo governa a Comunidade Autónoma do País Basco neste momento. A etimologia da palavra basco está ela também rodeada de mistério, mas parece estar ligada a buscus (bosque, floresta). Os bascos são conhecidos na sua língua com euskaldunak que significa falantes de basco ou euskotarrak, os nativos do país basco.
O idioma basco não tem relação com nenhum outro ramo linguístico hoje no mundo. O euskera, ou euskara, é a única língua de origem pré-indo-europeia falada na Europa ocidental e é, seguramente, a mais antiga do continente. 
Dominada por cerca de 1 milhão de pessoas, cerca de um terço da população, trata-se de um idioma que se esforça para sobreviver. Não se sabe ao certo sua origem. Com segurança, pode-se apenas afirmar que é uma língua isolada. O seu léxico peculiar e sua estrutura gramatical, difíceis de aprender para os não-nativos, com cerca de 24 casos de declinação, sempre fizeram do basco uma língua suscetível a mitos e vários preconceitos.
Mas quem vem a Bilbao não pode deixar de visitar o enigmático e desafiantes museu Guggenheim. 
Ele impõe-se pela sua localização e principalmente pela sua arquitetura. Foi projetado pelo arquiteto canadiano Frank Gehry e é hoje um dos locais mais visitados de Espanha. De arquitetura arrojada é coberto exteriormente por estruturas de titânio curvadas em vários pontos a fazerem lembrar escamas de peixe. Confesso que a mim não me fez nada lembrar escamas de peixe mas sim um revestimento moderno, limpo e brilhante como se pretende num espaço virado ao rio. Esta visão dos arquitetos é de facto muito pessoal e peculiar. São projetos que nascem de ideias que pretendem enquadrar e casar estruturas e paisagens. 
Parece que o museu faz lembrar um barco visto do rio como forma de homenagear a cidade portuária que Bilbao foi em tempos. Como não vi o museu do rio não posso tecer essa comparação. Por dentro e na região central estende-se uma estrutura de vidro curvada que une os 3 pisos. Visitar o museu implica não muito tempo mas muita capacidade de raciocínio e de aceitação. Não sou, infelizmente, um apreciador suficientemente sensível e entendedor de arte mas gosto de observar atentamente antes de 
obter qualquer informação sobre uma estrutura, peça, escultura ou quadro. Desta forma interiorizo as minhas impressões e tento fazer a minha própria leitura. Depois vou confrontá-la com o que o autor escreveu ou intitulou e tentar encontrar os traços ou as morfologias que o levaram a essas designações. Iniciei a visita pelo piso 3 segundo as recomendações de uma funcionária. E o piso 3 é praticamente toso dedicado a Yoco Hono, o que eu desconhecia. Estão expostas fotografias, peças, e vídeos. Alguns são curiosos e, para estarem num museu, então é porque são arte. Imaginem 2 preservativos suspenso numa tela, um vídeo com apenas as nádegas que julgo serem de Yoko Hono ou um vídeo onde ela emite sons de vários timbres desde grunhidos a gritos sonantes acompanhada por uma viola elétrica. Vale a pena ver. 
Existem outras salas com peças muito curiosas como sejam objetos cortados ao meio como forma de dizer que somos apenas metade do que somos. Outra peça simples é uma estante com dezenas de frascos de água alinhados, para nos lembrar que somos água. Ou uma estrutura que mostra uma divisão de uma casa onde um íman é colocado à esquerda e repuxa os objetos para esse lado como forma de equilibrar a nossa cabeça, que, segundo o autor vai inclinando para a direita. O segundo piso é o piso das coisas suspensas. Existem várias, algumas com fins lúdicos para crianças. Parecem tecidos de naylon que se suspendem com bolsas de ervas aromáticas ou arroz ou milho. Muito curioso, pois tem um efeito final muito atrativo e interativo pois pode-se andar por debaixo das estruturas e cheirar as suspensões. 
O autor desta peças tentou traduzir sempre uma imagem relacionada com a fecundidade, atribuindo o masculino aos objetos suspensos e no meio desta enorme estrutura está uma suspensão com formato vaginal por debaixo da qual ardem velas que simbolizam o fogo do desejo. Noutra sala está uma peça feita com nós de tecido característicos da região do Rio de Janeiro e que simboliza a pele.
O piso de baixo tem uma sala onde passa um filme que se chama clock. Num ambiente escuro e com sofás confortáveis assiste-se a um filme onde os relógios predominam e todos marcam a mesma hora. 
Há ainda uma parede com filamentos de luzes que se erguem até ao 2º piso com inscrições em vermelho e em azul, fazendo um efeito interessante pois pode-se passar através das colunas de luz dando a sensação que se entra para além de uma parede. Mas o ex libris do piso térreo é a sala das elipses invertidas. Trata-se de uma gigantesca sala onde estão colocadas enormes estruturas de um material oxidado com geometrias elipsoides, mas de forma a que as distâncias entre a base e o cimo da estrutura nunca é a 
mesma. Vale a pena percorrer algumas delas. Com a visita ao museu terminou a minha visita à capital do país basco, cidade onde é fácil viver, quer pela recetividade dos seus habitantes quer pela qualidade e organização que mostra aos seus visitantes.  Na minha próxima visita ao país basco  já poderei cumprimentar com um kaixo (hola), egunon (buenos dias), eskerrik asko (muchas gracias) e agur (adios).