Por vezes damos por nós a “viajar” levados
por pensamentos velozes que nos levam para outros tempos ou experiências vividas
em épocas diferentes e que, por alguma razão, ficaram na nossa memória. Uma
experiência, um aroma, um sabor, uma música, qualquer razão poderá ser o
detonador de tais ideias e pensamentos que afloram das profundezas da memória
para nos voltar a mostrar que aquilo que já vivemos afinal se encontra vivo
e presente. Por vezes é tão real que parece verdadeiramente recente. Surge com a
mesma ordem, as mesmas cores e a mesma intensidade. As experiências que nos preenchem
enquanto seres humanos e as recordações que temos delas são o mais valioso
património da nossa alma. Voltar ao passado pode por vezes ser doloroso, especialmente se a vivência foi desgastante e triste, mas revivida à distância pode trazer
tranquilidade e uma nova visão mais adaptada. Mas se, por outro lado, aquilo que experimentámos
foi intenso e trouxe felicidade, recordar torna-se um exercício de satisfação,
podendo provocar euforia e projeção para outros pensamentos e momentos de sonho
e criatividade. E criar é mais outra das riquezas do pensamento humano. A
criação é o motor do desenvolvimento, tem possibilidades infinitas e
acompanhada pela imaginação configura ambientes de transformação que modelam a
natureza individual e social. Nunca sabemos quando somos surpreendidos por
estes estados de memória que nos agitam, tal como não sabemos como
vamos gerir
esta informação. Será que é diferente quando estamos sozinhos? Serão mais dinâmicos
quando estamos com pensamentos evasivos? Surgem mais intensos quando
despoletados por um determinado som ou ambiente? E será diferente a forma como
aproveitamos e modelamos essas memórias do passado? Que extraímos destes
estados de alma? Serão eles o motor da criatividade e a plataforma necessária
para a génese de novas ideias? As
respostas a estas questões são difíceis de encontrar porque não dominamos a sua
génese. Serão estados da alma ou da carne? Volver (voltar) ao passado pode ser
a força motriz que nos alimenta todos os dias. São as experiências que
acumulamos que nutrem grande parte dos nossos momentos de comunicação. Falamos
dos nossos momentos em família, com os amigos e colegas e hoje partilhamos a
nossa vida nas redes sociais com o mundo, passando os estados de carne e alma a
momentos de comunicação virtual. Num destes momentos de pensamentos evasivos e
de confronto com o passado ocorreu-me um dos meus muitos momentos de
imaginação. Ouvia rádio a caminho do trabalho quando na M80 era divulgado o
passatempo Música com Gosto. Já ouvira a divulgação há alguns dias mas na
complexa tarefa que é a gestão das 24 horas do dia, a visita ao site da rádio
era constantemente protelada. Uma noite, ao serão, visitei a rádio e concorri
ao passatempo. Gosto de escrever e imaginar para mim é um exercício
de
excelência pois faz-me descartar do peso das múltiplas tarefas do dia. A
decisão de concorrer a concursos é espontânea pois constitui um notável
exercício e um desafio à criatividade. As notas introdutórias definem a
orientação das regras, o título do concurso e o apelo à criação dos candidatos.
A ideia deste passatempo era harmonizar os gostos e os sentidos. O mote é a
música! O Cheff convidado foi o Chakall que foi desafiado a construir uma receita
com base na música Everybody Hurts dos REM. Aos candidatos era pedido que
sugerissem uma ementa com base numa música com significado. Difícil para
uns, imaginativo e desafiante para outros. As ideias fervilham na minha cabeça
e as construções frásicas sucedem-se à velocidade dos pensamentos. Muitas ficam
perdidas ou deformadas pelo tempo por não ter capacidade de as registar ao
momento. Mas as ideias mestras ficam lançadas e delas nasce um novo fruto
tantas vezes diferente do primeiro que julgava perfeito e adequado para vencer.
Como não há limites para a
imaginação nem limites para a criação de um Cheff,
lançar um tema musical e adicionar-lhe uma receita que de algum modo a
represente é uma mistura de uma criação imensa. A música que escolhi foi Porto
Covo do carismático Rui Veloso. É uma música cheia de simbolismo para mim que
vivi no Alentejo e cresci junto à costa alentejana. Quem vive aqui dificilmente
se habitua a outro local, pois para além da paisagem, as falésias e o mar, o
perfume que se produz na junção da maresia com a flora dunar é algo que se
entranha para sempre na alma. Estes fatores que nos marcam para sempre
associados à degustação das iguarias com que o mar nos presenteia nunca mais
nos abandonam. O peixe fresco ainda a saltar, pescado à cana ou comprado na
lota, os percebes, as navalheiras ou os polvos constituem apenas uma pequena
amostra do que nos liga àquele mar para sempre. Para além da Costa Vicentina
ser um dos lugares
mais protegidos, selvagem e em estado natural da Europa, o
pescado do mar português foi recentemente classificado por vários Chefs de
craveira internacional, como um dos melhores do mundo. Haverá mais motivos de
orgulho? Voltando ao concurso Música com Gosto, com o patrocínio da M80 e da
Revista de Vinhos, e após a breve justificação para a música, lancei um dos
pratos que mais aprecio, o sargo assado que com a música e as razões da escolha
saiu assim: “Sugestão de prato: Sargo assado (brazeado) no carvão polvilhado com alhos, aroma de coentros regado com molho de limão. Música: Porto-Côvo de Rui Veloso.
Razões: O carisma inconfundível do grande Rui Veloso transporta-nos para a imensa beleza da costa alentejana. A letra
projeta-nos para a imensidão do mar azul e o olhar perde-se no brilho prateado
das águas elevando a dimensão sensorial que nos projeta para as infinitas
belezas do mundo, para o mundo dos sabores e pelo gozo de chegar a lugares
invulgares no planeta”. Passado algum tempo fui
contactado por e-mail com a
excelente notícia de que tinha sido um dos vencedores do passatempo. O prémio naturalmente
foi um requintado jantar no restaurante Volver do Cheff Chakall. Feita a reserva
rumámos até à Rua Luis de Freitas Branco nº 5 D no Lumiar onde, do mundo para
deleite dos portugueses apreciadores de boa comida, o Cheff instalou a sua
catedral de degustação. Fomos recebidos com o profissionalismo a que já nos
habituámos em ambientes distintos e requintados como este. A sala é de dimensões
generosas e decorada em tons discretos que vão dos castanhos aos verdes,
amarelos e beijes. A luz é suave e a cortar esta harmonia de tranquilidade encontramos
alguns apontamentos que provocam o desvio do olhar para procurar outra harmonia
provocadora das cores fortes que vão do verde alface nos bancos de balcão aos
cadeirões multicoloridos da requintada sala onde se aguarda por mesa. A
parede principal da sala encontra-se decorada com tapeçarias que fazem lembrar
cactos e no lado oposto desta o móvel garrafeira ocupa um lugar de destaque.
Cada mesa é servida por um pequeno candeeiro que emite luz de cor avermelhada
que confere a cada espaço comensal um ambiente romântico e propício à
concentração para desvendar os mistérios e os segredos criados pela imaginação
do Cheff. A revista de vinhos estava aberta na página 115 onde estava em
destaque o passatempo e o menú com que fomos presenteados. Para aperitivo (amuse-bouche,
em francês) foram-nos servidos scones de azeitonas com manteiga queimada. A
conjugação do toque de azeitona com a manteiga conferia àqueles scones um
carácter particular com uma distribuição global e intensa na boca. De seguida
foi-nos servido um Ceviche Amazónico confecionado com garoupa crua e cubos de
manga, adornado com finos fios de cebola estaladiça e
acompanhado com deliciosos
quadrados de batata-doce. O vinho escolhido foi um verde Quinta do Ameal de
2012. Como prato principal a criatividade do Cheff conduziu à preparação de polvo
à “Oaxaca” salteado com bacon, cogumelos e malaguetas acompanhado de puré de
espinafres e banana. O toque doce da banana e o picante discreto das malaguetas
conferiam ao prato um gosto elegante com requintes de mestria e ciência.
Acompanhámos este prato com um Tinto Argentino Fabre Montmayou Gran Reserva de
2009 que casou na perfeição com os sabores escondidos por entre o molusco e os
espinafres. A finalização do menu foi concretizada com um Cheesecake “Volver”
de goiaba e amêndoas torradas. Enquanto degustámos o delicioso menú esforcei-me
para entender em cada passo da degustação a relação do que
comemos com a música
Everybody Hurts. Não tivemos a oportunidade de questionar o Cheff sobre como a
sua sabedoria e experiência gastronómica o inspiraram para relacionar scones,
ceviche, polvo e cheesecake com a música em causa o que teria sido muito
interessante. Mas a experiência foi sem dúvida intensa e muito gratificante
deixando vontade de continuar a apelar à criação e a dar largas à imaginação. A
alma ficou mais rica, a carne agitada com vontade de novas aventuras pelo que
volver é sempre uma boa opção.
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