Saturday, March 26, 2016

Páscoa em Almograve

E ste post começa com a descrição de uma história. Não é uma história com o início de “era uma vez…” mas poderia ser. As histórias que têm este tipo de iniciação reportam-nos habitualmente para fábulas que os seus autores criaram e escreveram com o intuito de passar uma mensagem. São histórias que contam histórias de um tempo que já passou e cujas personagens vivem dramas ou histórias de encantar, a maioria delas com um final feliz. A história que se segue, é composta por alguns destes princípios mas não é alimentada por nenhum personagem ficcional mas sim por um personagem principal, aproximando-nos de forma humilde e superficial de alguns dos episódios da sua vida. Foi construída para fazer parte de um concurso para o dia do pai, mas não venceu o primeiro premio, mas venceu por ter saído do arquivo da memória e nos enriquecer com os momentos de uma vida. Coloco-a como texto inicial do post porque o meu pai é a figura principal dos momentos em família nestes dia de Páscoa. Contagia-nos com a sua coragem, espírito animador e positivo, o seu incontornável gosto pela gastronomia e pela graça do convívio familiar.
“O Toninho, o Tono, o António
O Toninho nasceu no ano de 1935 numa aldeia perdida entre as dunas e a várzea da costa 
alentejana, hoje património de paisagem natural protegida. Nos anos 30 esta aldeia transpirava miséria e pobreza, a par com a humildade das gentes que lá viviam e da imaculada beleza natural que ainda hoje preserva. O Toninho nasceu numa casa pobre onde não havia chão e pelo telhado entravam as pingas da chuva empurradas pela brisa marinha. Foi registado dias após o nascimento, porque da aldeia para a vila mais próxima, não haviam estradas e o percurso, que ultrapassava os 20 km, fazia-se a pé por dentro de ribeiros e lamaçal. No assento de nascimento ficou apenas o nome da sua mãe e, no lugar do pai, foi registada a frase “filho de pai incógnito” que era o modo como na altura se desresponsabilizavam os pais de se responsabilizarem pelos filhos que geravam. É curioso que ainda hoje este vazio paternal acontece no nosso país. A fome era uma constante. O alimento que mais abundava eram as papas, pitéu gastronómico da altura, fabricado com farinha de milho. O Toninho detestava papas, mas, ou comia o apanhava tareia. Para se tentar livrar às pancadas que lhe deixavam o corpo dorido, procurava dentro da boca, locais para esconder a 
mistura culinária, sem a engolir. Frequentemente adicionava-se leite às belas papas de milho mas nem assim aquilo era fácil de tragar. O leite sabia bem se fosse ingerido puro, sem mistura mas esse privilégio o Toninho não tinha. De noite dormia no chão de terra e alternava a aridez do soalho com a dureza de uma arca de madeira, com os irmãos. Teve febres (sezões, era como na altura se designava a febre) que quando começava ninguém sabia como iria terminar, sentiu-se a morrer mais do que uma vez. Cresceu a trabalhar como moiral (nome que se atribuía a quem cuidava de vacas, ovelhas e porcos (vulgo-pastor)). Gostava desse trabalho porque quem o contratava habitualmente também lhe dava de comer. Apesar da miséria em que vivia teve direito a frequentar a escola até à 4ª classe (4º ano atual), quase sempre descalço, pois não havia dinheiro para sapatos. Era um aluno esperto mas por vezes a fome fazia-o distrair-se e a professora não hesitava um 
segundo e batia-lhe nas mãos com uma régua de madeira. Era feliz à sua maneira. Já homenzinho abandonou a aldeia e fez-se à cidade onde conseguir trabalho como vendedor. Era determinado e trabalhador. Conheceu a Maria de Jesus com quem casou e com que constituiu a sua família, da qual eu faço parte como 2º filho. Passados uns anos, já por meados da década de 60, rumou à grande Europa, desconhecida e longínquo na altura. O país que o acolheu foi a Alemanha Ocidental, ainda dividida pelo muro de Berlim da Alemanha Oriental. Foi sozinho, mais tarde veio buscar a mulher e quando as saudades já não o deixavam dormir veio buscar os 2 filhos que já tinha. A vida na Alemanha constituiu para 
mim um notável período da minha vida. Como era criança, vivi tudo muito intensamente, aprendi a falar alemão e ao frequentar a escola incorporei os valores daquele povo e daquela sociedade. Ainda hoje me pauto por muitas regras sociais com as quais aprendi a crescer. As vindas a Portugal faziam-se a bordo de uma Volkswagen carocha beije, que percorria mais de 2 mil quilometros sem plano de viagem, apenas de mapa na mão. O objectivo era gastar o mínimo de horas possível para aproveitar o máximo de tempo de férias. O Tono conduzia de noite e de dia e só encostava quando o peso das pálpebras o atraiçoava. Não havia tempo nem dinheiro para pernoitar numa pensão. O descanso era no sítio onde lhe parecia mais seguro, habitualmente dentro de uma cidade, apenas com o banco encostado para trás. Recordo-me desses tempos em que durante a viagem eu e o meu mano 
íamos literalmente aos pinotes no banco traseiro. Cinto de segurança era coisa que não se sonhava por essa altura. Felizmente o Tono, que deveria ter uma proteção divina, sempre conduziu a família por bons caminhos. Os tempos em Portugal eram de pouco descanso pois havia uma obra para orientar. Uma casa que viria a ser o projeto de vida do menino Toninho, agora o António, homem de família.
Na Alemanha trabalhou na Daimler-Benz, conceituada fábrica dos automóveis mercedes, em Stuttgart, no sul da Alemanha. Depois de mais de uma década de trabalho com o propósito de construir uma vida em Portugal, alugou uma carruagem de comboio e por altura do nascimento do 3º filho, regressa de vez a Portugal para dar andamento ao seu projecto de vida. De regresso à terra onde nasceu, sem qualquer ressentimento pela vida miserável que teve, tinha o propósito de contribuir para o crescimento quer da sua vida que da vida da aldeia. Dinamizou então um projecto comercial 
com um restaurante e uma pensão, mesmo junto às dunas de areias douradas daquela aldeia que cresceu privilegiada junto a uma magnífica praia que hoje integra roteiros turísticos internacionais. O projeto foi um grande sucesso. A decoração era ousada e diferente e o António e a sua mulher, com um talento especial para a gastronomia, fizeram daquele local um espaço de referência incontornável nas décadas de 70, 80 e 90 (quase como a M 80). O trabalho era árduo mas compensatório e a vida do Toninho foi atingindo objetivos de estabilidade familiar e financeira. Permitiu aos filhos um crescimento saudável mas com uma visão de esforço e de valores. Cada conquista tinha o seu esforço com a garantia que seria compensada, se fosse trabalhada e merecida. Cresci com estes valores tendo conquistado desta forma a minha formação académica e o meu primeiro carro. Para isso 
tive que cumprir estes princípios e trabalhar nas férias e aos fins-de-semana, tal como um funcionário, mais de 12 horas por dia no estabelecimento comercial da família, experiência que me fez crescer e tornar responsável mais cedo do que eu alguma vez imaginava. Aos 17 anos tive direito à minha 1ª viagem de avião, feito raro para um rapaz da aldeia daqueles tempos, e aos 18 estava a estudar fora da proteção paternal.
O pai António esteve sempre lá para me orientar e ajudar, aconselhando, discutindo e fazendo valer muitas vezes os seus pontos de vista. Sempre soube dar-nos o espaço e a liberdade para fazermos as nossas escolhas, contribuindo com a sua experiência e ponderação quando as nossas escolhas não lhe pareciam as mais corretas. À medida que os anos foram passando foi partilhando os seus sonhos e verbalizando, referindo que não queria petir deste mundo sem conhecer o Brasil e fazer um cruzeiro. O primeiro sonho foi realizado aos 70 anos, quando rumou sozinho ao Rio de Janeiro uma vez que a sua companheira declinou o convite por achar que andar de avião, não era coisa para ela. O segundo está por concretizar...pode ser que esta história humilde e jenuina dê uma ajuda. Hoje com 81 anos continua rijo, um cozinheiro de 
mão cheia enchendo o coração de alegria e a mesa de iguarias quando os filhos o visitam.
Continua a ser generoso, continua a aconselhar e a contribuir com a sua experiência, confrontando-a com aspectos da vida moderna que tem alguma dificuldade em entender. É generoso para os vizinhos e adora a sua aldeia de onde já não quer sair. Tem uma relação íntima com aquele imenso mar azul e o aroma que dele emana seja nos dias de maresia seja incrustado nas navalheiras, nas conchas dos caramujos ou nas unhas de percebes que adora comer e partilhar. Vai à lota, lê o jornal, faz as refeições e ampara a sua Maria de Jesus que sendo mais nova, tem falta de auto-estima e de mimo. Este pai, é o melhor pai do mundo. Deu-me a vida, ajudou-me a crescer e preparou-me com a sua enorme sabedoria e generosidade, para a vida que hoje tenho e lhe agradeço para sempre. Quando Deus nos separar vai ser uma grande crueldade, apesar do António estar tranquilo em relação a isso por ter consciência plena que já ultrapassou a esperança média de vida. A sua pegada, como agora modernamente se diz, tem deixado marcas que me fazem sentir que ele é eterno e que nunca vai deixar de estar presente.
Depois da história segue-se a partilha dos momentos que fizeram desta Páscoa de 2016 momentos de grande envolvimento e de partilha, de saborosos momentos de degustação e de descoberta, de descanso e de grande serenidade. Estar neste Alentejo, nesta casa e não falar de pitéus é algo difícil pois como já ficou referido acima o pai António adora prendar-nos com o que de melhor sabe fazer em composições culinárias. Para a sexta-feira santa e para respeitar a tradição religiosa de não comer carne, elaborou um delicioso arroz de camarão com mexilhões da costa. Estava muito saboroso. A tarde de 6ªfeira foi abençoada com um sol que permitiu os termómetros atingirem os 20ºc o 
que me fez aproveitar para percorrer a falésia dos arredores. O caminho que fiz já me é bem conhecido mas cada vez que o percorro parece que se abre na minha frente um mundo novo e diferente daquele que já conhecia. Neste laboratório natural que é o Parque Natural da costa Vicentina as dunas oferecem-nos paisagens e enquadramentos difíceis de descrever. A variação morfológica, as cores, a vegetação que nelas predomina são tão heterógeneas que não parece haver dois locais de observação que sejam idênticos. A cor dourada dos grãos de areia que formam as dunas consegue mudar de dourado para branco e de granulometria fina e desagregada para zonas de compactação. A vegetação é rica em cor 
e forma encontrando-se aquela que nos delicia com uma flor oferecendo os seus pólens às delicadas abelhas e aquelas que formando aglomerados predominantes, ali se encontram com o objetivo de fixar as areias das dunas. Mesmo junto às falésias os habitantes do reino vegetal mostram a sua imponência fixando os solos enquanto outros se elevam em direção aos céus quais guardiões daquele mar que nunca me canso de olhar, de ouvir e de absorver. No percurso que fiz desta vez dediquei especial atenção à flora. Pode-se percorrer o mesmo trajeto várias vezes e as descobertas que fazemos são sempre diferentes. Os ângulos que fotografamos ou as variação da intensidade luminosa fazem dos 
mesmo percursos trajetos com interesses muito diversificados. Não sendo botânico vou tentar para além da fotos, referir-me a alguns nomes de plantas pelo conhecimento que me recordo dos populares, tentando depois a comparação com a sua classificação científica. A riqueza da flora é mais uma das atrações deste parque natural, pois para além das 750 espécies que acolhe, 100 destas são endémicas e 12 não existem em mais nenhum local do mundo. Os chorões da praia são uma espécie de vegetação muito característica deste local. Trata-se de uma espécie vegetal com pequenas estruturas em forma de dedos que se erguem sustentados em pequenos tentáculos suculentos e carnudos, de raiz superficial que 
se prolongam falésias abaixo ou pelas dunas formando tapetes muitas vezes impenetráveis a outras espécies (nome científico Carpobrotus edulis). Produzem uma flor que pode variar entre o amarelo e o lilás.
A Scilla é uma flor de pequenas dimensões, de aspeto frágil mas deliciosa, que prolifera por vezes em formas isoladas outras vezes em pequenos aglomerados juntos de outras vegetações de maior porte deixando a sua marca na paisagem pela sua cor azul forte e flor de pétalas frágeis. A Diplotaxis é outra espécie vegetal que caracteriza a paisagem por se apresentar em aglomerados amarelos que muitas vezes 
interrompem os tons esverdeados das outras espécies vizinhas. Junto à falésia é possível encontrar em locais específicos, grandes aglomerados de juncais que se deitam ao sabor dos ventos mostrando o poder deste elemento da natureza. Das falésias brotam pequenas nascentes de água umas em forma de gotas apenas, individualizadas ou em múltiplas lágrimas simulando pequenos salpicos de chuva. Aquelas cujo caudal o permite, arrastam consigo os minerais que se interpõem no seu caminho (habitualmente ferruginosos) depositando-os nas encostas xistosas, conferindo aqueles locais transformações cromáticas que interrompem a monotonia negra dos xistos de ardósia. Depois de uma tarde a 
percorrer caminhos conhecidos mas explorados sob um outro olhar, era tempo de retemperar forças físicas pois as forças emocionais foram reforçadas pela beleza observada e pela pelos aromas que nos perfumam a pele e entram pelas narinas e suguem o seu caminho até aos locais do nosso cérebro encarregues de os processar e guardar no arquivo da nossa memória. Lá permanecem para serem editados e processados em qualquer momento em que, no mesmo local ou noutro lugar afastado do mundo, o processo de recordação os chama para alimentar o filme que o nosso cérebro se encarrega de produzir para nós, produzindo sensações de calma, saudade ou simplesmente gratidão por ter vivido tamanha satisfação. Esperava-me em casa um lanche-jantar (sdinner, nome acabado de inventar para juntar o snack com o dinner) de percebes da costa. Os percebes, nome científico Pollicipes pollicipes são crustáceos de sabor intenso, constituído por duas partes, a unha ou capítulo, 
dura e calcária e o pedúnculo ou corpo propriamente dito. Este é mole e envolvido por uma 
pequena casca que se retira. Para que os percebes se possam retirar em condições de boa qualidade comestível têm que ser cozinhados com algum cuidado para que quando ao comer, a película que reveste o corpo carnudo saia inteira sem arrastar consigo o miolo delicioso do crustáceo. Este pitéu divino que se come quente, pode ser acompanhado com fatias de pão alentejano ao natural ou torrado e um bom vinho ou cerveja fresca. Para os dias seguintes esperavam-nos outras delícias gastronómicas. O almoço de sábado foi preparado com detalhes e requintes que só um entendido e paciente mestre de 
cozinha sabe orientar. A extraordinária feijoada de búzios com que fomos presenteados teve o início da sua preparação no dia anterior com a demolha do feijão caseiro que permanece a 
intumescer dentro de água de um dia para o outro. Os búzios são previamente lavados ainda vivos e com a casca, depois cozidos assim inteiros e posteriormente retirados da sua cosca dura e levados múltiplas vezes até ficarem livres da proteção viscosa com que vivem dentro da sua carapaça. Esta operação requer paciência e é obrigatória pois se a viscosidade permanecer junto ao corpo dos búzios, esta transmitirá ao preparado final uma consistência indesejável. Após a lavagem segue-se a cozedura que poderá demorar horas, em lume de lenha uma vez que este chefe de cozinha não gosta de utilizar a panela de pressão. O refogado é 
preparado com azeite, alhos, tiras de pimentos e depois da mistura já estar alourada, juntam-se os coentros. Os búzios agora cortados em pedaços pequenos são adicionados ao refogado seguindo-se as cenouras e o feijão. A água que se junta ao preparado é aquela que cozeu os búzios para que o sabor final fique apurado e sublime.

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